Amigos, compartilho com vocês a última edição da Publicação Oficial - Jornal nr. 48, Edição 13, da Associação de Classe: "Juizes pela Democracia", onde à página 10 consta um artigo de minha autoria. (http://www.ajd.org.br/)
O GENERAL E A DITADURA DO PRECONCEITO
Mostrar-se indignado com atitudes homofóbicas é regra no segmento gay. Mas quando tal comportamento parte de parcela da sociedade, é sinal de bons tempos. Em fevereiro pudemos comprovar que de fato caminhamos para um mundo mais tolerante e que reconhece um atentado a dignidade da humanidade diante de acontecimentos que se traduzam como tal. Quando sabatinados pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, um Oficial do Exército e outro da Marinha demonstraram preconceito. O General Raimundo Nonato Cerqueira Filho admitiu publicamente a convicção de que aos homossexuais deve ser proibido o acesso à carreira das armas. Isto por que em seu entendimento a vida íntima de “indivíduos deste tipo” fatalmente não os permite se “fazer obedecer”. Portanto seguindo esta ótica, o que um ser humano faz de sua vida afetiva interfere em suas relações de trabalho, pois, “não há aptidão para o comando”. Já o Almirante Álvaro Luiz Pinto aventou a possibilidade de um gay não ter “dignidade” para a função.
A emenda ficou pior que o soneto. Logo após o impacto de suas palavras o General pôde perceber que o momento histórico é outro, e, portanto, que seus argumentos estão longe de valer com força de lei imposta. Hoje a opinião pública não se curva frente a um decreto autoritário. Valeu mais o consenso. Vir a público e tentar esclarecer foi a saída encontrada para buscar salvar o cargo pretendido. Ao afirmar que suas percepções são entendimento pessoal a respeito de valores relacionados a “aptidão” e “perfil”, atributos supostamente imprescindíveis ao acesso a profissão militar, o General deixou claro, mais uma vez, se tratar de uma pessoa presa a um modo de pensar cuja regra é a aversão as liberdades – a própria democracia.
O país e o mundo tem dado sinais de crescente respeito ao ser humano tal como se apresenta, sem que pesem questões de ordem preconceituosas. Não está mais em voga valorar méritos com base em gênero, etnia, sexo e raça. Na “sinceridade” do General, encontramos face a face, a certeza do que víamos por espelho. Sabe-se que é comum dentre alguns fardados esta política constrangedora de expurgar os diferentes. Casos de perseguição política e assedio são fatos recorrentes nas Forças Armadas. À medida que a democracia avança, a sociedade tem tido acesso, através dos meios de comunicação, a várias denúncias de cometimento de crimes que vão do preconceito à fomentação do ódio. Porém, tal deturpada conduta não é tomada de forma generalizada por toda a tropa. O que se tentou apregoar fora a pseudo-existência de uma normatização institucional onde o preconceito é parte indissolúvel das relações militares. É bom lembrar que o próprio alto escalão do Exercito apregoa que é na tropa que se sente o reflexo dos anseios da sociedade. Assim como no passado recente a alta corte das Armadas se limita a dar ela própria um entendimento deturpado das coisas – como se convicções pontuais pudessem representar a realidade de toda uma conjectura. Retórica da busca costumeira em se tornar verdades de poucos, convicção absoluta de muitos – postura típica de ditadores.
Em contrapartida, para nossa sorte, e para desespero dos desavisados, a sociedade cada vez mais dá sinais de que não suporta falsas verdades, e que já está farta de manipulações espúrias. Quando o país se consterna com o sofrimento alheio de um ser humano perseguido por tentar ser feliz nas condições que dispõe, resta demonstrado caráter inovador social – uma busca pelo respeito ao próximo em suas diferenças. Deste povo também faz parte os servidores fardados, não menos cidadãos que os que não seguiram a carreira das armas. Se hipoteticamente admitíssemos o contrário, estaríamos traduzindo que os integrantes das Forças Armadas fazem parte de um Estado a parte do Estado brasileiro.
É sem dúvida, lamentável, mas algumas autoridades ousaram impingir legalidade a atitude preconceituosa. Assim se posicionou o Presidente da corte castrense, forçando um consenso surrealista ao admitir que o comportamento do General seria plausível uma vez que traduz a “fala recorrente da tropa”. Talvez o único mérito de tão oportuna e prestimosa defesa tenha sido o fato de fazer o episódio valer como estampada percepção deste perene cultivo, advento de boa parte da cúpula institucional. Apologia a um comportamento opressor, persecutório, desproporcional, e violento contra todos os que se apresentem “desiguais” e, portanto, desafetos institucionais. Uma histórica e fatídica incapacidade de condicionar decisões e atrelar condutas ao que expressa nossa Constituição.
Várias entidades de direitos humanos se posicionaram em prol da defesa da dignidade. E, outros poucos, pouquíssimos, lançaram-se a proteger o que taxaram de “sinceridade”, algo a ser hipoteticamente “louvável”. Mas as autoridades detentoras do poder para decidir se os Oficiais merecem acesso ao cargo pretenso não poderiam ter cometido o grande erro em fugir da realidade posto que a “sinceridade - verdade” é regra, e não exceção. Se o General não respondesse de forma clara o que havia sido questionado, estaria fadado a “calar ou faltar com a verdade”. Nesta ou naquela possibilidade, de qualquer forma, não poderia ascender à função pretensa, pois estaria demonstrada como o foi sua total incapacidade para ser Juiz. O responsável pela sabatina foi diligente ao tocar em sensível tema, para só então formar opinião.
Ser Magistrado requer valores, tal como, não se deixar contaminar por convicções preconceituosas e de foro íntimo. Todavia, talvez o mais louvável dos valores exigidos a um pretor diga respeito à ordem para considerar a dignidade da pessoa humana. Característica que torna julgador personagem central, e não mero expectador. Ator imprescindível a construção de uma sociedade justa.
Guardamos no episódio duas excelentes oportunidades. A primeira reside no fato da absoluta percepção desta inescrupulosa apologia ao preconceito presente nas instituições totais, ainda em vigor. Uma persistente confusão de papeis. O público com o privado. O pessoal com o coletivo. O legal com o indefensável. A outra, obviamente, diz respeito ao caráter novo revelado na sociedade: a intolerância à intolerância.
Fernando Alcântara de Figueiredo, Sargento licenciado do Exército, autor do livro: “Soldados não choram” – Ed. Globo. Membro do Grupo Tortura Nunca mais do Estado de São Paulo e Presidente do Instituto SER de Direitos Humanos.
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